Publicado em Maio-Junho de 2006 (pp. 3-5)
A identidade das CEBs e suas origens e Minas Gerais
Pe. Nelito Nonato Dornelas
1. As origens das CEBs
As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) surgiram no Brasil como um meio de evangelização que respondesse aos desafios de uma prática libertária no contexto sociopolítico dos anos da ditadura militar e, ao mesmo tempo, como uma forma de adequar as estruturas da Igreja às resoluções pastorais do Concílio Vaticano II, realizado de 1962 a 1965. Encontraram sua cidadania eclesial na feliz expressão do Cardeal Aloísio Lorscheider: “A CEB no Brasil é Igreja — um novo modo de ser Igreja”.
Em 1979, reunidos em Puebla, os bispos latino-americanos firmaram o seguinte compromisso:
“Como pastores, queremos resolutamente promover, orientar e acompanhar as comunidades eclesiais de base, de acordo com o espírito de Medellín e os critérios da Evangelii Nuntiandi; favorecer o descobrimento e a formação gradual de animadores para elas. Em especial, é preciso procurar como podem as pequenas comunidades, que se multiplicam nas periferias e zonas rurais, adaptar-se também à pastoral das grandes cidades do nosso continente” (Pb 648).
Os bispos do Brasil já haviam feito a opção pelas “comunidades de base” desde 1966, para tornar a Igreja mais viva, mais corresponsável e mais integrada. As CEBs foram consideradas atividade “urgente” pelos bispos, para renovar as paróquias. Esse plano foi sistematizado e lançado em 1968, pela Editora Vozes, na obra do Pe. Raimundo Caramuru Comunidades eclesiais de base: uma opção decisiva.
E o Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985, em Roma, afirmou:
“Sendo que a Igreja é comunhão, as novas ‘comunidades eclesiais de base’, se verdadeiramente vivem em unidade com a Igreja, são uma verdadeira expressão de comunhão e início para construir uma comunhão mais profunda. Por isso, são motivo de grande esperança para a vida da Igreja”.
O teólogo Leonardo Boff, falando sobre o termo “eclesial” das CEBs, em seu livro Eclesiogênese, diz:
“O adjetivo ‘eclesial’ é mais importante do que o substantivo ‘comunidade’ porque ele é o princípio constituinte e estruturante da comunidade. A inspiração religiosa e cristã aglutina o grupo e confere a todos os seus objetivos, também aqueles sociais e libertadores, características evangelizadoras. A consciência e a explicitação cristã constitui, portanto, a característica das CEBs e o elemento de discernimento face a outros tipos de comunidade”.
As CEBs, fruto da eclesiologia do Vaticano II e nascidas especificamente para atualizar a Igreja e adaptá-la ao mundo atual, tiveram profundas implicações na Igreja e na sociedade.
Devido ao contexto específico da sociedade brasileira, que vivia sob o regime de exceção, com cerceamento dos direitos civis, as CEBs se tornaram uma plataforma válida e eficiente para as mudanças sociais, apresentando ainda as bases de uma nova sociedade.
Hoje, passada a euforia inicial e tomando a devida distância, podemos constatar que as CEBs estão na raiz de vários movimentos sociais e têm contribuído para a formação de muitas lideranças no campo social e político. Foram responsáveis também pela formação de lideranças leigas no interior da Igreja, que assumiram o jeito de viver e celebrar a fé de uma maneira nova. Muitas vocações religiosas e sacerdotais foram despertadas pelas CEBs, possibilitando uma nova imagem do(a) consagrado(a).
No início do cristianismo, quem tentava viver como Jesus viveu, conforme seu testemunho e ensinamento, era identificado como alguém que estava no caminho, na caminhada. Não é fora de propósito que, em grego, caminho é método. As CEBs foram capazes de criar um método novo de ler a Bíblia, de celebrar a fé e de olhar a realidade. E, identificados com este novo método, o caminho, muitos foram tombados, deram a vida, foram martirizados. A profecia e o martírio têm sido uma das marcas mais fortes das CEBs. Além disso, as CEBs têm participado do amplo movimento de promoção e restauração da ética na economia, na política, na cultura, nas relações de gênero, nas relações ecológicas etc.
Em razão dos volumosos problemas humanos, com sua orientação excludente, que o atual sistema neoliberal vem criando em níveis globais, as CEBs têm procurado formar cristãos(ãs) “adultos(as) na fé”, desejosos de uma Igreja que leve adiante as intuições e teses do Concílio Vaticano II. Em linhas gerais, querem:
— uma Igreja inserida na complexidade de seu momento histórico, com a audácia tanto de ser profética como de estar aberta a aprender dos outros, das outras tradições cristãs e das outras religiões e culturas;
— assumir os valores do mundo moderno, acolhidos pelo Concílio Vaticano II, no campo institucional, teológico e pastoral;
— reformar as estruturas de governo da Igreja, ação capaz de desencadear outras reformas;
— autonomia das conferências episcopais e mais autonomia das Igrejas locais;
— maior protagonismo dos(as) leigos(as) no âmbito dos ministérios;
— reconhecimento canônico-jurídico das CEBs como Igreja;
— cultivar uma espiritualidade libertadora, enraizada no seguimento de Jesus Cristo, comprometida com os(as) excluídos(as).
HISTÓRIA DAS CEBs EM MINAS GERAIS
A história das CEBs mineiras tem o seu início com o que se chamou inicialmente de formação de “Comunidades”, no final da década de 60 e início da de 70. Surgiram em vários locais do estado de Minas mais ou menos na mesma época, embora sem articulação entre as diversas experiências, e foram fruto de vários fatores conjugados: de um lado pela renovação da própria Igreja católica, que a partir do Concílio Vaticano II e das reuniões episcopais de Medellin (1968) e Puebla (1979) propiciam maior abertura para a participação dos leigos na Igreja, maior comprometimento com os setores mais pobres e marginalizados da sociedade, além do desenvolvimento da Teologia da Libertação; de outro lado pelo fechamento da sociedade brasileira pela ditadura militar, a restrição dos espaços de organização dos trabalhadores (como Associações, Sindicatos e Partidos), o arrocho salarial e as péssimas condições de vida e trabalho vivenciadas por eles, que leva a população mais pobre a buscar formas de solução para os seus problemas, a partir dos pequenos grupos de “Comunidade”, que se reúnem pela fé em Jesus Cristo e o desejo de construção de um mundo melhor.
Assim, surgem em Minas as “Comunidades”, na diocese de Itabira/Cel. Fabriciano; na Região Industrial de Belo Horizonte/Contagem; em Caratinga; Juiz de Fora e outros locais do estado. Eram experiências relativamente frágeis e muito desarticuladas entre si, mas foram o início do que se construiu posteriormente. Mais tarde é que serão reconhecidas como CEBs, ou seja, Comunidades Eclesiais de Base.
CONSTRUINDO A EXPERIÊNCIA DAS CEBs EM MINAS
Na Diocese de Itabira/Cel. Fabriciano, no Vale do Aço, o trabalho de formação de Comunidades tem início logo após a criação da própria diocese, em 1965. A nova diocese se empenhou com todas as suas forças na aplicação das diretrizes do Concílio Vaticano II. O bispo, D. Marcos Noronha, encontrou muita resistência, tanto por parte das outras dioceses de Minas, quanto por parte de todo o clero. Alguns padres, no entanto, estavam mais abertos diante da nova caminhada da Igreja – isto se explica, em parte, pelo fato de que nessa região as injustiças eram muito gritantes, e ainda se encontrava recente na memória fatos violentos como o do massacre de Ipatinga.
O MASSACRE DE IPATINGA
Eis aqui um episódio Estado: Minas Gerais
Sangrento da nossa história. Ano de 63.
De quem morreu não se fala, Cidade de Ipatinga,
Quem matou não quer a glória. Outubro (foi este o mês).
Só os que sofreram guardaram, Uns 20 mil operários:
De pai pra filho passaram está montado o cenário
Pra se gravar na memória. (o resto a polícia fez).
O massacre de Ipatinga aconteceu nos portões da USIMINAS, no dia 7 de outubro de 1963, quando os trabalhadores resolveram resistir contra a violência como eram tratados. Enquanto no escritório central estão negociando o diretor japonês, o diretor brasileiro, a polícia, a comissão de trabalhadores, o presidente do sindicato e o padre, do lado de fora os trabalhadores aguardavam, sob forte vigilância policial. Assustados com o número dos trabalhadores, e usando de sua prepotência habitual, a polícia abriu fogo contra eles, atingindo até uma criança de 3 meses que estava no colo de sua mãe.
Jamais se conheceu o verdadeiro número de mortos naquela chacina: o inquérito policial levantou apenas 8 nomes, mas o presidente do sindicato, o vigário e o coveiro do cemitério, testemunhas oculares, garantiram que mais de 30 operários perderam a vida nesse episódio.
Esta foi a primeira greve dos trabalhadores da Usiminas. Conseguiram algumas vitórias, mas foi uma experiência isolada naquele momento e a violência sofrida deixou repercussões na vida e na organização dos trabalhadores durante muitos e muitos anos, principalmente porque logo depois aconteceu no Brasil a ditadura militar, que perseguiu ainda mais os trabalhadores e as suas organizações.
(Fonte: Cadernos do CET, n. 17)
No início do processo de evangelização na diocese, D. Marcos visitava as famílias para falar sobre as mudanças que estavam acontecendo na Igreja e que a proposta de Jesus era de uma Igreja viva em movimento. Assim, ele com o seu jeito simples ia conscientizando o povo; valorizando sua cultura e crenças levava a palavra de Deus, orientando e ensinando a ler a Bíblia. Muitas lideranças começaram a surgir com a visão desse novo jeito de ser Igreja de Jesus Cristo. Nos encontros com as famílias havia partilhas, alegria, oração, reflexão, e assim o povo foi se animando e ligando a fé e a vida. Começaram então a surgir idéias para melhorar a vida das comunidades e foram se organizando alguns movimentos, como as Associações de Amigos de Bairro, Associação das Domésticas, Associação das Lavadeiras, Grupos de jovens, Clubes de mães, para reivindicações, mutirões para construção de casas, formação de Centros Comunitários. Os Clubes de Mães tiveram grande destaque nessa ocasião: eles representaram o primeiro espaço para a participação da mulher, foram celeiro para o surgimento de inúmeras lideranças e se expandiram enormemente por toda a diocese - para se ter uma idéia, só em Itabira haviam 45 Clubes de Mães nessa época.
Nesse processo de renovação a diocese perdeu muitos padres, e até o próprio bispo renunciou, por causa das inúmeras pressões. Mas com todos estes sacrifícios e sofrimentos foram colocadas as bases das diretrizes que até hoje orientam a caminhada da diocese: evangelização, formação de espírito comunitário e transformação social.
Assim, na diocese de Itabira/Cel. Fabriciano, as CEBs nasceram em meio a mudanças, conflitos, orações, reivindicações, criação das pastorais e movimentos. Com várias paróquias sem padres, houve um forte apelo aos leigos para assumirem certas tarefas, como dirigir cultos, fazer batizados, casamentos, etc., enfim, para cuidar da vida interna da comunidade cristã. Há, sem dúvida, um trabalho forte de construção do espírito comunitário e de evangelização, que envolve inúmeros catequistas e leigos em geral, inclusive setores da classe média local, mas muitas ações caracterizam-se, no início, pela fuga do conflito no enfrentamento das questões locais, que exigem pessoas comprometidas e envolvidas nas lutas, e que precisavam denunciar também as injustiças sociais e eclesiásticas. Como as CEBs, no entanto, dão mais ênfase à opção preferencial pelos pobres e, consequentemente, à transformação da sociedade, no processo que se segue os movimentos populares, as lutas sindicais e políticas, a Pastoral Operária, a Comissão Pastoral da Terra e outras pastorais sociais tornam-se cada vez mais presentes nessa diocese.
A riqueza de toda essa experiência local pode ser evidenciada nos processos vivenciados em João Monlevade, e que ganharam visibilidade nacional. Sua luta e resistência transformaram-se numa referência para todo o país no final da década de 70 e início da década de 80. A luta dos metalúrgicos desse município representou um marco na reconquista de direitos pelos trabalhadores organizados, frente à exploração capitalista e aos desmandos da ditadura militar.
Em João Monlevade, a partir de 74, havia inúmeras pastorais e um povo muito religioso, com uma enorme sede de formação. Com a chegada de um grupo de religiosos missionários do Imaculado Coração de Maria, padres e freiras presentes na base, foram criados vários grupos de reflexão que se reuniam nas casas.
A partir daí foi criado um Curso de Fé e Vida, realizado todos os sábados. Este grupo era composto de jovens, mulheres donas de casa, membros de Pastorais, Legião de Maria, Apostolado, Ministros dos doentes, professores, e trabalhadores da Belgo Mineira que, mais tarde, fizeram parte da mesa diretora ou até mesmo da direção do Sindicato dos Metalúrgicos, um dos mais combativos da época no Brasil.
Foi criada a Associação das Domésticas, Associações de bairro, Associação de Professores. As mulheres começaram a perceber o seu papel na Igreja, nos sindicatos, no partido político. A conscientização dos direitos da mulher levou à criação do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Mulher. Surgiu ainda a idéia da Casa do Trabalhador, com o objetivo de se criar um espaço para todos os trabalhadores da região, desde Caeté até Acesita. Em 1979 foi criado o Partido dos Trabalhadores local, com forte participação popular.
Todas essas atividades representaram momentos ricos em formação, de uma Igreja alegre, combativa e presente na vida e na luta do povo.
Em Belo Horizonte a formação de Comunidades se deu a partir da Região Industrial. É preciso lembrar que o que existia de organização mais geral, e de Igreja, na Região Industrial na década de 60 foi praticamente esfacelado pela ditadura militar. Após as greves dos metalúrgicos, em 1968, em Contagem, ocorreu o acirramento da perseguição a todos que atuavam na área.
O lento trabalho de formação de Comunidades na região teve início no final da década de 60 e se desenvolveu durante as décadas seguintes, mas foi no fim da década de 70 e início dos anos 80, porém, que esse trabalho ganhou visibilidade e maior articulação. Nas outras regiões da arquidiocese as comunidades demoraram mais a surgir e a se articular, apesar de, pontualmente, já existirem diversos grupos esparsos em vários bairros e favelas de Belo Horizonte.
A experiência das comunidades da Região Industrial, hoje conhecida na Igreja como Região Episcopal Nossa Senhora Aparecida, se dá a partir de dois elementos fundamentais: a iniciativa de alguns membros da Igreja e o engajamento dos leigos em suas bases locais. Os primeiros grupos de reflexão surgiram na região próxima ao Vale do Jatobá, através da atuação de Frei Eduardo Metz, e depois se expandiram para outros bairros pela atuação dos próprios leigos, uma vez que havia falta de padres para uma assistência mais constante às comunidades.
Nos grupos de Círculos bíblicos era feita a leitura de um texto bíblico, que era discutido pelos participantes. As pessoas colocavam então a sua opinião, fazendo a ligação dessas reflexões com a sua vida e, a partir do que era falado, fazia-se uma análise, um aprofundamento do texto e das idéias colocadas.
As comunidades que se formaram a partir dessa experiência foram muito ativas na região, tanto no que se refere à participação nas atividades religiosas locais, quanto nas de organização popular. Assim, é marcante a sua presença na dinamização das atividades paroquiais; em atividades importantes da Igreja local, como as Missas de 1o. de maio, Vigílias de protesto e outras aglutinações maiores convocadas pelos padres; e também nos movimentos sociais que se organizam na região a partir de diversos fatores.
Quanto aos movimentos sociais, percebe-se que até 1976 havia manifestações mais localizadas de resistência contra a péssima qualidade de vida imposta aos moradores da região. Nos anos seguintes há uma intensificação crescente de mobilizações populares em torno de questões básicas de infra-estrutura, com destaque pela luta por água e transporte coletivo. Em diversos bairros o povo se organiza para lutar por água, esgoto, asfalto, luz, postos de saúde, coleta de lixo, escolas, formando ainda Grupos de geração de renda, Cooperativas de compras, Cooperativas Educacionais e uma infinidade de outros grupos ou mobilizações locais. O Jornal dos Bairros cumpriu uma importante tarefa na articulação e melhoria qualitativa dessas mobilizações, além de contribuir para a sua divulgação. Algumas dessas lutas, como a do transporte coletivo, por exemplo, conseguiram mobilizar muitos bairros para uma movimentação conjunta bem articulada, o que levou a algumas vitórias significativas. Outros desdobramentos importantes foram surgindo a partir da organização popular; por exemplo: através das comunidades iniciou-se a movimentação por creches nos bairros, que, posteriormente, se transformou no “Movimento das Creches Comunitárias”, que tanta contribuição deu para a Educação Infantil e sua estruturação futura.
As CEBs foram se articulando lentamente na Região Industrial. Com o apoio da Coordenação de Pastoral, a atuação de alguns agentes de pastoral leigos, alguns padres e freiras, e de muitos leigos da base foram organizados diversos Encontros regionais e paroquiais; tentativas de articulação com a catequese local e a Pastoral das Favelas em atividades conjuntas; produção própria de material de reflexão e participação no processo de articulação das CEBs em Belo Horizonte e em Minas Gerais.
Merece destaque a importância do Grupo de CEBs formado por representantes de diversas comunidades, e que durante mais de dez anos se reuniu semanalmente na Coordenação de Pastoral, para planejar e avaliar tais Encontros, ajudar na assessoria e articulação das CEBs na região e em todo o estado, e para preparar materiais como Via-Sacra, Mês de Maio, Mês da Bíblia e Novena de Natal, a partir de sugestões que traziam de seus próprios grupos de reflexão, num trabalho de produção coletiva e democrática sem precedentes.
Toda essa caminhada, no entanto, foi marcada por muito sofrimento, dificuldades e incompreensões. A hierarquia da Igreja nem sempre apoiou o trabalho feito pelas comunidades, preocupada muito mais em controlar a ação dos leigos do que em estimular a sua participação democrática; a religiosidade engajada, que leva a uma ação no mundo concreto vivido, sofre preconceitos e é assinalada como “falta de fé”; a possibilidade de articulação das comunidades e maior participação das pessoas em várias atividades é dificultada pelas precárias condições de vida que atingem os integrantes das CEBs e a toda a população mais pobre do país. A fé e a perseverança das CEBs, no entanto, é que foram capazes de construir todas essas “obras”, que mudaram a vida de inúmeras pessoas.
O processo de formação e desenvolvimento de comunidades nas outras regiões de Belo Horizonte – Região Episcopal Nossa Senhora da Piedade, Região Episcopal Nossa Senhora da Conceição e Região Episcopal Esperança – se deram de forma semelhante ao da Região Industrial, só que em momentos distintos e com características específicas. Na Região Nossa Senhora Aparecida há uma concentração maior de operários e trabalhadores da indústria, e só recentemente surgem bairros em que a classe média se destaca. Já nas outras regiões a estratificação social é mais acentuada, especialmente na Região Nossa Senhora da Piedade, com bairros de classe alta ao lado de imensas e míseras favelas. A orientação paroquial e o tipo de participação dos leigos nesses diferentes bairros também costumam ser bastante distintas, o que leva a uma grande dificuldade de articulação das experiências. Mas, de qualquer forma, as CEBs das favelas e bairros populares das demais regiões vivenciam um processo semelhante ao descrito acima: reflexão bíblica; ligação da fé com a vida; participação nas atividades da Igreja; participação em movimentos populares locais; tentativas diversas de articulação das experiências. E, infelizmente, também nelas a história de preconceitos, perseguições e incompreensões se repete... Mais uma vez, é somente a fé do povo e a sua garra para lutar por um mundo melhor que sustenta a sua caminhada.
A partir de 1983, no bojo das tentativas das CEBs de se articular no estado, forma-se uma Equipe de CEBs em nível arquidiocesano, que, embora não seja reconhecida oficialmente pelos bispos naquela ocasião, passa a se reunir mensalmente na Igreja São José, no centro de Belo Horizonte, e conta com representantes das três Regiões Episcopais existentes. Essa Equipe promove vários Encontros arquidiocesanos de CEBs nos anos seguintes e tenta manter a animação das CEBs das diversas regiões da arquidiocese. Embora enfrentando dificuldades para maior organização das atividades, esse trabalho é muito importante para a troca de experiências, maior articulação e prosseguimento da vivência dos participantes nas comunidades.
Hoje existe um Secretariado das CEBs em Belo Horizonte, o apoio por parte dos bispos se faz mais visível e os grupos das diversas regiões continuam a desenvolver esforços para melhorar a articulação das CEBs em nível diocesano.
Na Diocese de Caratinga a formação e o desenvolvimento de Comunidades são muito marcados pelo trabalho do MOBON (Movimento da Boa Nova), iniciado na década de 60, e que tem como objetivo a formação de Comunidades, a partir da motivação religiosa. O MOBON teve e ainda tem muita importância na experiência das CEBs em Minas Gerais, tanto pela profundidade do que é vivido pelos seus participantes, quanto pelo alcance geográfico do movimento, que se alastrou por todo o leste de Minas, Zona da Mata, região Nordeste de Minas (Vale do Rio Doce e Vale do Mucuri), além de outros estados como Espírito Santo e Mato Grosso. É conhecido pela sua pedagogia própria e pelo amplo engajamento dos leigos em suas atividades.
As origens do que depois veio a se constituir como o MOBON remontam a experiências muito antigas na diocese, que, de diversas maneiras, marcam a fase inicial do movimento. Essa história começa por volta de 1946, quando na região era muito forte a presença dos protestantes - o Pe. Geraldo da Silva Araújo se preocupou em criar um tipo de trabalho que esclarecesse os católicos das dúvidas que os protestantes colocavam no meio deles. Então criou-se um tipo que se chamava, na época, “Amarradinho”. Tratavam-se de explicações específicas para questões polêmicas mais comuns, por exemplo, os irmãos de Jesus, comer carne de porco, etc. Grupos de leigos eram “treinados” na discussão dessas questões e, quando saíam, ou a cavalo, ou a pé, ou de outra forma semelhante, para as comunidades, faziam uma convocação pública, chamando todo mundo, inclusive os protestantes, e ali, naquele “debate público”, eles iam explicando assunto por assunto, com segurança e sem se deixar intimidar pelos questionamentos dos protestantes. Esses leigos eram chamados de Pioneiros, e esse trabalho dava aos católicos a sensação de que eles também tinham respostas para as coisas, que eles também sabiam se posicionar e desfazer dúvidas, não se sentindo humilhados diante da eloqüência dos protestantes. Na década de 60, já com a presença de Alípio e João Resende (Irmãos Sacramentinos e que são duas pessoas de referência importante para o desenvolvimento do MOBON), esse tipo de trabalho era chamado de Semana Bíblica, e os Pioneiros ficavam nas comunidades durante uma semana. A idéia orientadora era a de que “você não pode, você não consegue, colocar uma doutrina positiva aonde há dúvidas”; então era feito esse “desbravamento” primeiro, ou seja, fazia-se primeiro a explicação da parte polêmica, depois havia um cursinho chamado “O homem e seu destino”, e depois um outro cursinho sobre “A Igreja de Jesus Cristo”.
Vista à luz da perspectiva ecumênica atual essa experiência apologética pode ser considerada bastante contraditória, no entanto, criou alguns significados importantes para a época: em primeiro lugar marcou a ampliação da participação dos leigos, que aos poucos foram se organizando de maneira própria, com maior autonomia em relação à presença de padres e religiosos; a auto-estima desses leigos fica mais elevada, uma vez que, independente do seu nível de escolaridade, sentem-se capazes de falar, responder, desenvolver discurso próprio e se posicionar com segurança frente a opiniões diversas.
Com o Concílio Vaticano II, amplia-se na diocese o processo de formação de Comunidades, que teve amplo apoio por parte de padres, religiosos e leigos. A partir daí foram surgindo as pequenas comunidades com suas lideranças naturais, que iam firmando-se nos grupos semanais de reflexão e nos cultos dominicais. Ir superando o caráter apologético e passar para o processo de formação de comunidades foi o grande desafio daquele momento, aliás, não muito bem aceito por várias pessoas. Toda essa fase foi marcada por um discurso predominantemente religioso.
A intimidade com a Palavra de Deus, no entanto, foi despertando seus participantes para uma visão mais crítica da realidade. Começava-se, naturalmente, maior ligação entre Fé e Vida. Nas décadas de 70 e 80 o discurso passa a ser marcadamente comunitário, ou seja, a idéia predominante nas comunidades é de que a união é necessária para se resolver os problemas comuns. Sem perder a profunda vivência espiritual, as comunidades começam, aos poucos, a se organizar para fazer frente às dificuldades e desafios da realidade, num processo semelhante ao que estava ocorrendo em todo o país com os movimentos populares. Nessa época, então, é que são criadas inúmeras Associações de Produtores, Grupos de compra e venda, Cooperativas informais, Sindicatos de Trabalhadores Rurais e tantos outros movimentos, numa realidade predominantemente rural. Também é a partir daí que as Comunidades ligadas ao MOBON desenvolvem um processo de maior troca de experiências e articulação com outras experiências no Estado, através dos Encontros Mineiros de CEBs, Encontros regionais e outras atividades.
No final da década de 80 e durante toda a década de 90 o Movimento vai se abrindo cada vez mais para o engajamento de seus membros nos movimentos sociais e políticos; as comunidades vão assumindo a ferramenta política como elemento de transformação da sociedade – daí que diversas lideranças vão se filiando a partidos de base, se candidatando e ocupando cargos públicos no legislativo e no executivo, e algumas delas já acumulam experiências de gestões comprometidas e bem sucedidas; continua o processo de criação e gestão de Sindicatos de Trabalhadores Rurais mais combativos, além de Cooperativas e Associações diversas.
Esse compromisso social e político tem sempre como baliza a Palavra de Deus. Nesta caminhada de fé e vida as comunidades vão se comprometendo cada vez mais, adquirindo também sua autonomia missionária e transformadora. Isto gera um dinamismo nos líderes e participantes de comunidades, de tal modo que, para onde vão, levam este modo de lidar com a Palavra de Deus e esta inquietação pela transformação social.
É interessante observar que essas fases vivenciadas pelo MOBON não aconteceram de maneira linear, mas dialética. O que há é uma síntese da vivência religiosa com esse conjunto de experiências, em que convivem simultaneamente diferentes perspectivas, mesmo com a predominância de uma delas, e em que a prática religiosa e social vai sendo construída coletivamente frente aos desafios de cada realidade e de cada época.
Essa trajetória foi, também, marcada por lutas e pelo enfrentamento de muitas dificuldades, tanto no âmbito eclesial quanto no social, mas o caminho percorrido pelo MOBON e a vivência das comunidades propiciaram, ao final, uma forte espiritualidade, vinculada a um grande engajamento na sociedade.
A PEDAGOGIA DO MOBON
É importante ressaltar alguns aspectos da Pedagogia do MOBON, pois são esses elementos que possibilitam o desenvolvimento da experiência e têm grande significado no processo. Ela é eficiente porque é simples e assimilada facilmente pelas pessoas que estão envolvidas no movimento.
· Um dos pontos marcantes da Boa Nova é o uso da linguagem simbólica através de comparações, que vão encontrando a porta de entrada na cultura do povo. Este tipo de linguagem deixa todos mais à vontade. Isto desinibe o leigo e o leva a colaborar fortemente na Evangelização, aproveitando seu conhecimento prático sem que ele perca a sua simplicidade, sua forma própria de expressão. Ao falar por imagens e exemplos comparativos, mesmo pessoas analfabetas sentem-se capazes de prosseguir no trabalho de evangelização.
· Outro ponto marcante da Boa Nova é o leigo evangelizando leigo. Isto ajuda na recuperação da auto-estima dos leigos e vai gerando autonomia. E qual é o lugar social do leigo? Ele está no mundo do trabalho, luta pela sua sobrevivência e a de sua família, constrói o processo familiar e vivencia todas as suas relações, enfrenta os desafios de inserção no mundo. É esse o leigo que, no MOBON, vai assumir sua índole missionária, dando cursos em outras comunidades, paróquias, dioceses e até outros estados, criando um efeito multiplicador muito interessante. Independente de seu nível de escolaridade, ele sente que é uma pessoa capaz de fazer alguma coisa na comunidade. Então ele pensa: “Eu sou gente. Eu sou filho de Deus. Eu sei. Eu posso desenvolver essas atividades. Eu sou capaz.” Com isso, o leigo torna-se agente e o efeito multiplicador de sua atuação forma uma verdadeira rede de experiências, que leva à formação de novas comunidades e dá a “cara leiga” ao MOBON.
Além disso:
· O MOBON trabalha com momentos fortes no tempo litúrgico da Igreja: preparação da Semana Santa e preparação do Natal, e utiliza material próprio para isso.
· Promove Cursos complementares em áreas das necessidades das pessoas: Medicina Alternativa; Fé e Política; Cantos Pastorais (Oficinas); Bíblia.
· Promove dois cursos preparatórios de sua pedagogia. Todos os fazem: CURSO DE PRÉ-BOA NOVA e CURSO DE BOA NOVA. Neles são abordados diversos assuntos: realidade social, vida, Palavra de Deus, Sacramentos, criação de grupos de reflexão e formação de comunidades, dinâmicas de grupos, formação de lideranças, prática social.
· Dá ênfase especial para a questão dos Cantos, valorizando e incentivando a produção e divulgação de cantos próprios pelas comunidades.
COMPARANDO E APRENDENDO...
Despertar a comunidade é como plantar uma semente de abóbora. Você coloca a semente e joga a terra por cima, ninguém vê mais nada. Aí, devagarinho, surge um broto pequeno que vai crescendo; uma abóbora começa a nascer e depois que a abóbora nasce, para viver ela tem que se lançar no chão; então tem os cachinhos da abóbora, aquelas espécies de raizinhas que vão se agarrando no chão e no se engarranchar têm força para ir prá frente; então dá a folha de abóbora, na frente dá uma flor abóbora... Mas todo sujeito que é mesmo da roça sabe muito bem que a flor de abóbora grande não dá nada, e a flor de abóbora pequena é que produz abóbora... Essa comparação vem mostrar que não é o que fala muito que produz, mas sim a palavrinha certa, certeira, isto é, a flor pequena que dá abóbora.
E vai continuando: chega na frente a abóbora encontra uma cerca e ela não desanima com a cerca. Aí a cerca já representa um problema, uma dificuldade, um obstáculo. Então, o que a abóbora faz? Ela passa por baixo da cerca e continua a sua caminhada. Na frente encontra um muro muito grande, ela não desanima, ela atravessa por cima do muro. Isto quer dizer o seguinte: que vida de comunidade é plantar uma semente aonde se encontra barreiras, dificuldades, mas, como a abóbora, nós também não podemos desanimar, sempre dando um chute aqui, acolá, apesar das dificuldades. Cada comunidade vai dar nome para essas dificuldades. No caso, às vezes, é até um padre que não apóia, ou lideranças que estão em conflito, ou o povo que está desanimando ou sem esperança de melhoria.
A abóbora, para viver e produzir, tem de se firmar no chão e não parar de se alastrar, mesmo quando encontra dificuldades. Assim também são as Comunidades.
AS MICRORREGIÕES DAS CEBs NO ESTADO DE MINAS GERAIS
As experiências destacadas acima não foram as únicas do estado de Minas. Em todas as regiões podem ser apontadas inúmeras outras, cada uma com sua riqueza, seus pedaços de dificuldades e sacrifícios, seus desafios particulares, mas, em todas, o que predomina é a resistência do povo, sua fé inabalável e sua atuação prática na construção de um mundo melhor.
Minas Gerais é um estado muito grande e cheio de realidades distintas. Nele se encontram grandes centros urbanos, com pólos industriais importantes; regiões rurais em que predomina a pequena propriedade e a produção familiar, mas também outras em que o latifúndio domina, com toda a pobreza que dele decorre; se há um sul de Minas, mais próspero, embora com inúmeros problemas de fome e desemprego, também há o Vale do Jequitinhonha, do Mucuri, do Rio Doce e o norte de Minas, castigados por secas, miséria e pobreza, mas que também possuem uma riqueza cultural extraordinária e a beleza de um povo que resiste sempre. E assim é Minas, com suas cidades históricas, suas estâncias hidrominerais, suas montanhas, rios, cachoeiras, mas também, e principalmente, com seu povo que cria e recria em suas montanhas as mais diversas formas de resistência e sobrevivência contra a opressão e a injustiça.
Em todas as regiões de Minas surgiram experiências de CEBs, com suas lutas particulares e suas tentativas de articulação. Dessa forma, lutas sindicais, partidárias, lutas pela terra e por melhores condições de trabalho e moradia nas cidades podem ser apontadas em inúmeros locais, assim como o enfrentamento de conflitos dentro da própria Igreja e a conquista de espaços para uma atuação mais engajada. Vale ainda ressaltar a resistência dos povos indígenas presentes no estado: krenak, maxakali, pataxó, pankararu, xacriabá, aranã, que lutam pela demarcação de suas terras e pelo resgate de sua cultura. Muitas dessas lutas ficam às vezes pouco conhecidas, ou se perdem na memória do povo, devido à falta de divulgação ou do registro de sua caminhada. É importante que os movimentos populares passem a escrever e divulgar a sua história, pois refletir sobre a própria caminhada é também um jeito de aprender e de avançar.
No que diz respeito à organização das CEBs em Minas Gerais, o estado se divide, hoje, em 7 microrregiões:
Micro Norte: dioceses de Diamantina, Montes Claros, Januária, Paracatu.
Micro Nordeste: dioceses de Teófilo Otoni, Araçuaí, Almenara.
Micro Centro I: dioceses de Belo Horizonte, Divinópolis, Oliveira, Sete Lagoas, Luz.
Micro Centro II: dioceses de Itabira/Cel.Fabriciano, Governador Valadares, Caratinga, Mariana, Guanhães.
Micro Zona da Mata: dioceses de Juiz de Fora, Leopoldina, São João Del Rei.
Micro Sul: dioceses de Pouso Alegre, Campanha, Guaxupé, Abadia de Claraval.
Micro Triângulo: dioceses de Uberaba, Uberlândia, Ituiutaba, Patos de Minas.
Seria impossível arrolar neste espaço toda a riqueza das inúmeras experiências das CEBs de Minas. Os textos a seguir representam apenas alguns dos exemplos da resistência do povo mineiro e da importância das CEBs no estado:
TEXTO 1:
Numa escola de Uberlândia, foi pedido pela professora que os alunos da 4a. série fizessem uma redação com o título “A vida de cada um”. O texto a seguir é a redação de uma menina de 11 anos, Sem-Terra como seus pais, e que vive em um acampamento naquele município.
A vida de cada um
Eu, Maria Eulálya, morava no bairro Tocantins, situado em Uberlândia.
Meu pai e minha mãe estavam desempregados procurando emprego, e não conseguiam porque já tinham idade avançada. E então resolveram procurar uma solução.
Numa tarde de segunda-feira, uma multidão de pessoas nos convidou para entrar no MLST - Movimento de Libertação dos Sem-Terra. Como não tinha outra solução, dissemos sim, sem perguntar para o meu pai, que estava à procura de emprego. Quando o meu pai chegou minha mãe disse:
- Antônio, nós temos um ótimo convite!
- Qual, diga, está me deixando curioso!
- Vamos pro Sem-Terra!
- Você está louca? Quer matar estas crianças de fome?
- Não! Mas lá estaremos seguros!
- Tá bom, mas depois não queira voltar.
E aí foi nossa primeira ocupação:
Quando nós menos esperávamos chegaram dois ônibus e encostaram, depois chegaram os caminhões. E depois daí, então, meu pai se animou e falou:
- Corra Geralda, arrume os meninos, vamos!
E foram se ajuntando as pessoas que também iam conosco, no total de 700 famílias. Não demorou uma hora e finalmente chegamos na fazenda Tangará.
Chegando na fazenda o nosso sonho durou pouco. Com 16 dias o juiz da cidade, não entendendo a nossa reivindicação, deu a liminar para nos tirar.
Numa noite de muita chuva estava vencendo o prazo da liminar. Nós, já sem alternativa, já cercados pela polícia que ia nos despejar, resolvermos fugir à meia-noite para a fazenda Carajás, que ficava a 10 km do local em que estávamos acampados.
Lá também nosso tempo durou pouco, pois o mesmo juiz deu mais uma vez a liminar para a desocupação da fazenda. Vencido o prazo da liminar partimos novamente sem destino.
Chegando às margens da rodovia que liga Uberlândia a Prata, no km 34, resolvemos acampar; ali foi onde fomos xingados pelo Tenente-coronel Adenor Araújo.
Mas mesmo assim continuamos acampados lá 6 meses. Já cansados de tanto esperar resolvemos, juntamente com mais 300 famílias, reocupar a fazenda Tangará.
O juiz, mais uma vez não entendendo a nossa reivindicação pela reforma agrária nas terras improdutivas, deu novamente a liminar da reintegração de posse para o fazendeiro.
Nós, já cansados de tanto entrar e sair, resolvemos resistir.
A polícia entrou no acampamento sem a autorização; houve conflito, queimamos uma viatura e se fosse possível queimaríamos 10 para defender nossos direitos.
Eles estão ameaçando construir uma penitenciária e colocar os marginais com os bandidos e ladrões, que na língua deles somos nós.
Mas nós não estamos com medo; estamos organizando o nosso acampamento, pusemos energia, estamos construindo roça para o nosso sustento.
Nós estamos confiantes em Deus primeiramente, em segundo em Nossa Senhora Aparecida que é quem nos dá força para seguirmos nossa jornada e em terceiro em nossa advogada doutora Marilda, porque temos certeza que ela não vai nos deixar na mão.
Nossa Senhora Aparecida é quem está nos protegendo de todo mal. As pessoas lá fora pensam que somos ladrões, marginais, mas precisam vir aqui conhecer a realidade de perto. Lá fora recebemos todo tipo de nome, mas estamos com a consciência limpa que nós não somos isso. Nós somos fiéis a Deus!
Eu nem sei como nós adoramos nossa roça querida. Eu acho que o nosso país é muito frágil, nada que nós trabalhadores rurais pedimos é correspondido.
Maria Eulálya da Silva – 4a série – 11 anos
Cidadã de Uberlândia, de Minas Gerais, do Brasil e do mundo.
O casamento entre o povo e a Palavra
(Um pouco da caminhada das CEBs na diocese de Leopoldina)
A diocese de Leopoldina, região da Zona da Mata, faz limite com as dioceses de Campos (RJ), Caratinga, Mariana e Juiz de Fora, e neste ano de 2002 está completando 60 anos de caminhada na força da Trindade, este é o nosso lema.
Na força da Trindade, a melhor comunidade, estão as CEBs que fazem um caminho sinuoso, às vezes atingindo os picos, outras vezes adentrando por trilhas, fazendo picadas para sobreviverem.
Uma das primeiras sementes foram lançadas pelo MOBON, Movimento da Boa Nova, vindo da diocese de Caratinga. Não foram trazidas pelo vento, mas pelas mãos quentes de João Resende e Alípio, padre Guinael, José Paulo e outros. As pessoas iam para Muriaé e Eugenópolis em busca de formação nos cursos do MOBON. “O Evangelho é cultura quando toca o coração.”
O município de Visconde do Rio Branco foi outro ponto onde as CEBs floresceram de maneira forte e original, através do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e dos Círculos Bíblicos. Todos os passos eram cantados pelo Cadedo, o poeta das CEBs da nossa diocese. Irmã Julieta e suas companheiras, Teia, Adão e o povo das comunidades de Guiricema, Guidoval, fazem parte desse cenário. “Nosso povo canta e ginga à moda do tocador!”
Acolhidas por uns, incentivadas por outros, desacreditadas por alguns, as CEBs pipocaram em outros pontos da diocese, em Cataguases, Astolfo Dutra, Leopoldina de forma mais tímida, uma paróquia aqui, uma comunidade lá, na área rural e urbana. Foi desta forma que ganharam rosto. Lideranças vão surgindo nesse ambiente. Um olhar a partir da vida do povo, iluminado pela Palavra de Deus. “Nosso povo conta história, nosso povo é cantador.”
Em Ubá a Pastoral Operária, com Irmã Mariza, Juraci, dona Rita, padre Sebastião Jorge e outros fizeram um forte trabalho junto aos operários da indústria moveleira. E aí também as CEBs ganham raízes.
As pessoas foram se descobrindo e se dando as mãos, porque perceberam que falavam a mesma língua, enfrentavam os mesmos desafios, tinham o mesmo ideal: a luta pela vida. “Nosso povo chora as mágoas quando perde seu valor!”
A força da união fez brotar decisões e organização. A CPT, Comissão Pastoral da Terra, junto com o Sindicato de Trabalhadores Rurais e Associações de Muriaé, Miradouro, Vieiras, Eugenópolis, Visconde do Rio Branco, levantaram a bandeira da organização dos trabalhadores e trabalhadoras rurais: documentação, agricultura orgânica, cursos de Saúde Alternativa, mercado dos produtores, que é batizado de Sítio Mineiro.
A organização se impõe pela união das pessoas, pela necessidade de se encontrarem para planejarem, para sonharem juntos e, juntos, celebrarem as lutas. Daí surgem os Encontros diocesanos de formação, na época da Campanha da Fraternidade e em preparação para o Mês da Bíblia. São Encontros ricos de conteúdo, mas também ricos de convivência, de troca de experiências.
Outro momento forte foi o das romarias: Romaria na Pedra Santa, na Pedra Furada, contra as barragens. Manifestação contra a construção do aeroporto, dentro da cidade de Muriaé. Participação das comunidades nas Romarias das Águas e da Terra. “Nosso povo quer justiça! Nosso povo é lutador!”
O dia da Santíssima Trindade é bem celebrado com a confraternização das CEBs. Cada ano numa paróquia da diocese. Lembramos, com alegria, a festa dos 25 anos das CEBs, celebrados em Muriaé. Milhares de pessoas cantavam e dançavam a Utopia do Reino de Deus, animados por Zé Vicente. “Quando o dia da paz renascer, quando o sol da esperança brilhar...”
O tríduo de preparação ao novo milênio, que foi batizado de Projeto Vai Missionário, foi trabalhado nas bases pelas lideranças das comunidades. Representou um momento forte de participação, envolvimento e comprometimento do povo. “Vai missionário, vai evangelizar de um jeito novo, novo jeito de amar e fazer ressoar a Palavra de Deus no meio do povo.” O que contribuiu para o fortalecimento deste Projeto foi a formação bíblica. Formamos equipes volantes, que foram em todas as comunidades levando o Evangelho da comunidade de Marcos, em 1997, de Mateus em 1998, de Lucas em 1999 e de João em 2000. Conseguimos atingir mais de dez mil pessoas com a Palavra de Deus. Tudo isso aconteceu, porque houve um casamento, que consideramos “perfeito”, entre as CEBs e o CEBI. O casamento entre o povo e a palavra, entre o “céu e a terra”.
As equipes volantes do CEBI, indo para o meio do povo das comunidades, escutavam a Palavra que ecoa em todas as palavras. CEBs e CEBI: união que sustenta a esperança de que sempre vale a pena seguir lutando. União que impede que o desânimo tome conta da nossa vida. União que “alimenta, permanentemente, com o óleo da Palavra, da confiança, da solidariedade e do perdão, a lamparina sagrada que arde em nós. Assim sempre haverá luz em nosso caminho.”
Em nossa história de CEBs somos como pontos de luz. Não temos a pretensão de ser farol. Como pontos de luz seguimos o nosso caminho. Temos sempre uma delegação nos Encontros intereclesiais e nos estaduais. Somos presença nos programas de rádio de algumas paróquias. Procuramos celebrar a vida do povo em nossas liturgias.
A nossa luta tem momentos de resistência diante das injustiças, momentos de silêncio diante das incompreensões, momentos de encanto diante da sabedoria que vem do povo, mas acima de tudo temos momentos de grande intimidade com o Deus da vida, Deus-mãe “que carrega as comunidades no colo, desde o ventre materno”.
Neli de Almeida
Pela Equipe de Animação das CEBs – Diocese de Leopoldina